Afinal, o que estamos fazendo aqui?

É muita gente dando nota pra vinho hoje em dia. James Suckling, Robert Parker, o guia Descorchados, um instagram de vinho novo por semana, sua tia pinguça que baixou o Vivino e passa horas no mercado escaneando garrafa de Almáden, enfim. Todo mundo está afim de dar uma nota pro liquidozinho que passou pela goela, subiu pro cérebro e depois foi embora como todas as coisas. Alguns produtores vão lá e colocam essas notas no rótulo da garrafa – ao menos, as dos três primeiros. Sua tia do Vivino precisa de mais respaldo na praça.

O que isso diz pra você, que toma? Você realmente liga se quem deu a nota foi o James Suckling ou o Robert Parker? Poderia muito bem vir uma garrafa de vinho que diz apenas “98 pontos” que muito provavelmente você não discutiria a qualidade daquele gole. Quem dá os pontos é quem o mercado referenda, mas ninguém me convence de que uma nova coroação iria causar bate-boca no mundo do vinho. Afinal de contas, quem bebe vinho só pode ser um dos três: um experiente, provavelmente sommelier, que sabe o que buscar e onde buscar, e tanto faz o que o guia Descorchados falou sobre o assunto; um entusiasta, que confia no Vivino, na pontuação de quem quer que seja e está procurando beber bem sem saber exatamente como; e os porra-loucas, para quem sequer importa o tipo do vinho. Gente que tem dinheiro e entorna chablis e Dom Perignón simplesmente porque pode. Só a um desses segmentos interessa o que a gente está fazendo aqui e, acredite: para essas pessoas, o que eu falo ou o que o James Suckling fala tem pouquíssima diferença. Se eu ou Suckling discordarmos de alguma coisa, talvez o lado dele seja comprado com mais facilidade, pela tradição na praça. Mas caso alguém queira saber o quanto vale um Dark Horse (vide post anterior) e o velhote nada disser sobre o assunto, meu post vai servir como orientação de consumo da mesma maneira.

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Agora, o que é realmente importante que se diga: mesmo mantendo o padrão clássico de notação, com distinção de aromas, cor, boca, harmonia, complexidade e procurando os defeitos possíveis, ainda assim a avaliação de vinho talvez seja perca em subjetividade apenas para a avaliação de videoinstalação. Isso porque o que está em jogo é o repertório, proposta, intenção, enfim, tudo aquilo que a Daiane dos Santos diz que vai fazer antes de sair dando pirueta por aí. E com isso não estou dizendo que um vinho bom para um será um vinho ruim para outro, como se a própria discussão sobre qualidade fosse infrutífera nesse meio. Não. Um vinho bom ainda é um vinho bom. Mas um vinho 84 e um vinho 98 podem muito bem ser o mesmo vinho, e tudo o que há de diferente entre eles é o infeliz que deu uma nota.

E para que serve a nota? A gente sabe a resposta, mas mesmo assim, vamos lá: Se você pega um 92 Robert Parker e bota na boca, você quer sentir a mesma coisa que o Parker sentiu quando botou o mesmo vinho na língua. Ou seja, não apenas você quer resgatar vicariamente a experiência do crítico, como também guarda em si uma fé de que aquela sensação pode ser revivida. O bom crítico de vinho é aquele que consegue manter uma boa biblioteca gustativa na memória e acessar a gavetinha do Chateau Margaux com a facilidade com que lembra da letra da Dança da Manivela. E quando eu digo isso, quero dizer acessar tudo o que há para ser acessado nessa memória: as notas, o corpo, o peso do vinho na língua, enfim, tudo aquilo que seus amigos que bebem Itaipava dizem que é a maior besteira do mundo. Parece loucura, né? Mas é assim que funciona, e isso se aprende e se resolve da mesma maneira que se aprende e se resolve todas as coisas do mundo do vinho: na litragem. Tomar até guardar na memória. Um eterno reviver de experiências, como um serial killer que volta à cena do crime ou um epicurista de primeira viagem que acha que o prazer não sofre desvalorização inflacionária. Estamos sempre a fazer ventriloquismo de nossas bebedeiras passadas. Nos banhamos no mesmo rio achando que só nós é que estamos mudados, e que nosso fiel permanece… bem, fiel. É isso o que estamos fazendo aqui. E é isso que vocês também estão fazendo aqui.

Dark Horse – Big Red Blend (Estados Unidos)

Achei por bem começar esse blog com um blend americano. E ninguém coloca “red blend” no rótulo do vinho sem medo de soar ralé como os produtores do novo mundo. E olhe lá, porque um “red blend” de Mendoza, dependendo da situação, já coloca uma sobrancelha em pé. Isso porque os velhacos da Europa já fazem a mesma coisa há tanto tempo que todo mundo que presta um segundo de atenção nos cobres que está depositando nas garrafas já sabe o que cresce na região bordalesa, no Médoc ou no Alentejo. Mas não estamos aqui para respirar poeira de museu hoje (talvez outro dia). Vamos falar desse Dark Horse Big Red Blend, cujas toxinas nesse exato momento infestam meu cérebro, permitindo a desinibição necessária para a confecção desse texto.

Pois bem: Dark Horse, uma vinícola jovem localizada em Modesto, na Califórnia. Está perto, mas não está exatamente em nenhuma das principais regiões vinicultoras do lugar. O que pra eles é ótimo, já que a marca coloca todo o peso de seu marketing no aspecto outsider do vinho. Vamos combinar que é uma boa estratégia, já que esse cheiro de formol que os enochatos carregam debaixo do sovaco desviam a atenção do novo mundo. Melhor mesmo é pegar os novos bebedores, como este que vos fala com um bafo de álcool insuportável. Uma visitinha ao site da vinícola vai mostrar a enóloga responsável pela empreitada, a Beth Liston, como uma bad girl, acordando de madrugada pra mexer no motor do carro, desfilando por uma fileira de parreiras ostentando uma puta tatuajona no braço, enrolada numa bandeira com a logo inteligente da marca – um cavalo que tem uma taça de vinho como mancha de cabeça. Enfim, americano é o paulistano do norte da América: curte qualquer historinha que agregue valor a uma marca. O mote disruptivo da Dark Horse consiste na desassociação entre qualidade do vinho e preço elevado, o que por mim é ótimo, muito embora não valha de nada aqui em terras tropicais em que a bebidinha dos deuses é mais cheia de taxinha do que jaqueta de punk. Algum dia estaremos livres de tudo isso, mas esse dia ainda não é hoje.

E o que temos no Big Red Blend? Pra começar, um nome bad boy, provavelmente referente ao Big Red One, a infantaria do exército americano durante a Segunda Guerra Mundial, homônimo ao filme sobre o mesmo tema dirigido pelo grande Sam Füller (assistam!) É, amigos, se tem um país que gosta de guerra e de lembrar de guerra toda hora, esse país é os Estados Unidos. Nem na hora de matar uns neurônios com umas uvas fermentadas dá pra esquecer do negócio. Tergiversei. Queria dizer que, se tem alguém favorável a blend, esse alguém sou eu. Contanto que funcione, eu não dou a mínima pra pureza do varietal, pra DOC, DOCG, DOGCSDCEF nada dessas merdas, só quero tomar um vinho gostoso. E se o vinho gostoso tiver uma origem completamente sem vergonha quanto esse, tanto melhor. Isso porque as uvas contidas nessa garrafa vêm de todo lugar do globo: Espanha, Chile, Argentina e Estados Unidos. Sim, os safados importaram uvas características desses lugares, como o Malbec argentino, o Tempranillo espanhol, o Cabernet Sauvignon chileno (sério mesmo?) e ainda um Petit Verdot, um Merlot e um Syrah que vieram da própria região mas que francamente poderiam ter vindo de qualquer lugar do mundo, porque o terroir aqui é um preciosismo que simplesmente não existe.

O que existe de verdade é: madeira. Claramente a vinícola investiu pesado em carvalho francês e americano pra envelhecer essa delicinha abaunilhada, acafezada e apimentada. É pra não deixar dúvidas: estamos tomando um vinho jovem para gente jovem. O bagulho não tem nem safra que é pra não exigir demais do cérebro. Empreendedores de blazer e playboys em geral tentando fazer uma média com alguma gata são provavelmente o público alvo desse vinho. Até porque, seguindo a tendência da região, trata-se de um rótulo mais adocicado do que um blend argentino ou sul africano, talvez. Esse, aliás, é o grande problema dos vinhos da terra de Ronald McDonald e General Sanders: o açúcar residual torna a quinta ou sexta garrafa do mesmo rótulo já insuportável. Perco as contas dos vinhos norte-americanos pelos quais me apaixonei e desapaixonei com a velocidade de opiniões de um fã de k-pop. O negócio fica enjoativo muito fácil mesmo.

Mas até enjoar, vamos combinar que é um vinho excelente para acompanhar uma carne alta e bem vermelha. Um filet mignon grosso temperado só no sal e na pimenta negra, selado na frigideira mais quente que a lava do Vesúvio é um companheiro fiel para esse líquido encorpado e pouco lacrimoso que traz aromas muito reconfortantes de frutas negras e madeira chamuscada. Olha a cor dele ali na foto que eu tirei: dá pra ver que se trata de um vinho jovial, democrata e humanista. Parece que gringo quer resolver a má disposição para os taninos com açúcar. É uma solução meio burra, para não dizer antieducativa, porque não se aprende a tomar vinho tinto sem passar pela boquinha amarrada, mas quem disse que todo mundo tem o mesmo espírito aventureiro que a gente? Eduque mal uma população e essa população se tornará cada vez mais refratária a qualquer mudança para fora da zona de conforto estabelecida. Isso não é problema meu, a minha parte estou fazendo aqui. O negócio é tão adocicadinho que no exato momento em que escrevo essas linhas, uma drosófila se aproveita de uma gota que escorre pela garrafa. Nada comparado a um vinhão de gótico de cemitério, mas em se tratando de vinhos de rolha vindos de outro país, vocês sabem como a coisa funciona. Melhor que essa seja a primeira garrafa do dia pra não enjoar muito.

E que minhas críticas ao caráter adocicado do vinho não escondam minha predileção por ele. É ótimo mesmo, pra carne vermelha, chocolate amargo ou qualquer outro pedaço de comida disposto a dar um nocaute nas suas papilas gustativas. Só não me invente de tomar isso aqui com gorgonzola ou queijo parmesão, olha lá, hein?

Será que eu deveria colocar um sistema de notas nesse site? JS e RP são iniciais reconhecidas facilmente pelos amantes de vinhos, mas as minhas iniciais YA fazem lembrar um gênero literário pouco renomado. Talvez seja melhor assim então, uma escala pouco renomada no meio desse mundo esnobe.

Minha nota, baseada em critérios que vocês nunca saberão: 78.

YA: 78pts. Hahaha que beleza, gosto assim.

E vocês, o que acharam? Comentem para eu ficar sabendo.

Evoé!

Eu devo ter algum tipo de psicopatologia pós-moderna pra inventar de fazer mais um blog, como se não bastasse todas as coisas que praticamente sugam as horas da minha semana. Mas por que alguém além de mim deveria se preocupar com isso, afinal? O que importa é que eu quero falar sobre vinho, e não posso usar as redes sociais que já tenho para isso.

E por quê, vocês perguntariam. Porque vinho é que nem literatura: de um lado ninguém liga, todos acham que é um assunto difícil e elitista (sabe o que mais é elitista no Brasil, amigo? Alfabetização. Então segura a onda antes de levantar o narizinho da ignorância pro assunto); de outro, há um fandom imenso cheio de nuances, liturgias e uma reverência modorrenta que eu sinceramente espero ajudar a destruir ao longo dessa empreitada. Sendo assim, cá está o Vinhão, um blog ridículo pra falar de uma das poucas coisas que me fazem acordar cedo pra ir trabalhar: vinho.

Alguém que ignore que vinho é um troço tão bom que pelo menos duas grandes civilizações do mundo antigo criaram um deus especificamente pra bebida pode achar todo o papo enochato um despropósito, um exagero, e um trabalho inútil, já que o conhecimento sobre um vinho adquirido via texto beira a infrutividade ante o processo de derrubar uma garrafinha. Mas tudo pode ser justificado por um outro ângulo. Não se trata aqui de um aprendizado, mas de um guia para a coisa. Quem não entende pode ser navegado pela resenha aqui postada, e quem entende vai saber do que eu estou falando e, mais do que concordar ou discordar, vai ter a oportunidade de ter o consumo orientado.

Agora: devagar com o andor que o santo é cabaço. Toda a justificativa e preâmbulo dos parágrafos acima podem levar o possível leitor (terei leitores?) a se preparar para um James Suckling, um Robert Parker ou a um Lopes O Homem do Vinho. Não sou nada disso, muito embora não possa dizer que não gostaria de ser também. Se procuro baixar pontes no mundo da internet para encontrar camaradas de gole, é como a um igual que me dirijo. Talvez meus métodos e abordagens sejam heterodoxos demais para a coisa — e isso me renda nada além do desprezo e ostracismo das massas — as minhas intenções são honestas. Pra ser bem sincero, a coisa toda é, antes de tudo, um exercício de crítica, uma experimentação sobre o método e uma justificativa intelectual para a bebedeira desenfreada que consome meus dias e possivelmente minha saúde. Se isso não parece razoável para um site gratuito numa internet povoada por meme de Chapolin com frases que ele nunca disse, eu não sei o que pareceria.

Então, parafraseando o cineclube Kevin Spacey: Kevin, venha! Importante agora é comentar, estabelecer diálogo e construir uma base sólida de vinhos que talvez vocês gostem, talvez não. O que vai sair daqui eu não sei, mas estou curioso pra descobrir.

Aguante!